A extinção do Ministério da Cultura por Michel Temer causou celeuma na internet e na rouanetosfera. Alguém sabe para que ele servia?
O Ministério da Cultura brasileiro foi criado em 15 de março de 1985 por José Sarney. Aqui se encerram nossos argumentos a favor de sua extinção. Repetindo: criado. por. José. Sarney.
Segundo a Wikipedia, “foi responsável pelas letras, artes, folclore e outras formas de expressão da cultura nacional e pelo patrimônio histórico, arqueológico, artístico e cultural do Brasil.” Pergunte-se a si mesmo sobre o que você conhece de letras, arte, folclore e (perca um bom tempo nessa daqui) “outras formas de expressão da cultura nacional” antes de 1985 e o que conhece depois de 1985.
Os grandes escritores da nação (contando com José Sarney, é claro). Os grandes artistas. As expressões do folclore (pode ser num gráfico ou Power Point comparando Saci Pererê com Bonde do Tigrão). As “outras formas de expressão da cultura”. Bom, aqui temos um adendo após a decisiva argumentação profunda sobre o destino do Ministério da Cultura. Não tem Gleisi Hoffmann ou Lindbergh Farias para dizer que não há argumentos.
A decisão do presidente Michel Temer de extingui-lo, amalgamando-o ao Ministério da Educação, causou fuzarca, sobretudo, óbvio, entre aqueles que recebiam dinheiro do Ministério. Não é exatamente uma notícia: qualquer coisa feita por Michel Temer será criticada por petistas (indicar ministros, falar de programas sociais, falar de Lava Jato, falar, respirar etc).
A confusão é que os endinheirados em questão confundem Ministério da Cultura com Cultura, crendo que a supressão do primeiro causará a extinção da segunda. Sobretudo: confundem o seu próprio trabalho com “a cultura nacional”. Com “arte”. Com algo necessário ao país, sem o qual estaremos todos fazendo uga-uga, não entendendo de nada (ainda mais de política, ao qual ficou reduzida a cultura brasileira com o ministério).
Vide declarações de “artistas e produtores” que O Globo entrevistou sobre a fusão. Digno de nota: todos os entrevistados são petistas. Alguém está surpreso? Será que vai demorar muito para acabar com o Ministério do Jornalismo que dá verbas a quem lhes puxa o saco? É a chamada rouanetosfera. Artistas que, sem o poder do Estado de arrancar o dinheiro de qualquer um para transferir para seus bolsos, já teriam virado empacotadores de supermercado.
Augusto de Campos: “É puro retrocesso. Mas não esperava outra coisa de um governo (…) resultante de um impeachment sem fundamento jurídico, e orientado por mentalidades conservadoras e retrógradas.”
É, portanto, mandatório para receber verbas do Ministério da Cultura ter um posicionamento político esquerdista, revolucionário e stalinóide.
José de Abreu mostrou suas preocupações culturais, este grande artista: “Solicitei ao governo francês um visto. Me deram um especial de residência chamado Competência e Talento com direito a trabalhar lá. Talvez por isso a Cultura na França movimente sete vezes mais dinheiro que a indústria automobilística.” Como o Brasil vai sobreviver sem isso?
Um tal de Sérgio de Carvalho, diretor teatral e “pesquisador” (nunca se entende bem o que essas pessoas fazem para justificar nosso dinheiro sendo transferido para suas contas bancárias) é hardcore em rouanetês e saca o manual de palavrório oco da Escola de Frankfurt:
“A extinção do Ministério é a confirmação simbólica do próprio golpe: uma manipulação da letra da constituição para reforçar o mando do capital sobre a vida dos que trabalham. Signfica a imposição de critérios econômicos, lógica do evento, eficácia de fluxo financeiros, anulação da história, e combate policial ao direito a imaginar um mundo além da forma-mercadoria.”
Não viver pelo capital é viver pela subsistência, usando todo o dinheiro sem poupá-lo para formar um capital. Sem capital, não haverá o que tomar das pessoas para financiar o Ministério da Cultura. Mas apenas com esse tipo de verborréia se ganha aplausos “culturais” no Brasil.
Apenas alguém divorciado da realidade pode acreditar que o Estado é capaz de anular critérios econômicos e “lógica do evento” em produções culturais, ou ir contra a “eficácia de fluxos financeiros” (pedaladas da Dilma à parte, ou o ministério tem isso, ou vira um buraco negro de dinheiro, o que parece ser o desejo real do tal diretor).
O melhor é a “anulação da história” (risos) e o “combate policial ao direito a imaginar um mundo além da forma-mercadoria” (gargalhadas), logorréia que não significa absolutamente nada, mas o fez parecer absolutamente profundo para quem fica embasbacado diante de qualquer Jean Paul Sartre, Judith Butler ou István Mészáros falando sobre nada com palavras tudo por aí.
Já Cacá Diegues, cineasta cuja maior obra é Tieta do Agreste, dá uma viajada mais light no reino da rouanetosfera:
“Simplificando, a educação prepara as pessoas para o mundo real, enquanto a cultura estimula a inventar outros mundos. Botar as duas coisas juntas, como se fossem uma coisa só, é um retrocesso acadêmico, uma incompreensão do mundo moderno e do futuro. Um retrocesso.”
A educação clássica prepara para o mundo real, mas trabalha justamente o imaginário. Uma das maiores obras de crítica literária que é crítica ao modo esquerdista de reduzir a cultura a uma “imaginação” ou alguma irrealidade é, justamente, A Imaginação Liberal (em sentido americano, ou seja: esquerdista), de Lionel Trilling.
São ensaios justamente sobre a falta de “imaginação moral”, ou seja, de uma imaginação em roteiros, livros, peças etc capaz de criar situações em que o maniqueísmo bobo da política, das tribos, clubes e agremiações fáceis não seja a tônica dominante. Nem sempre o certo e o errado são tão claramente discerníveis – pense-se na Antígona, lutando entre uma justiça terrena civil e a justiça universal dos deuses. Pense-se em Hamlet, ou na solidez de justiça, mas manca de realidade de um Dom Quixote.
É de se perguntar se Cacá Diegues e outros aboletados no Ministério da Cultura de fato expandiram nossa imaginação desde 1985 ou se, pelo contrário, nos fizeram crer que algo fora do Ministério da Cultura seja “uma incompreensão do mundo moderno e do futuro”.
Uma dica: quase todos disseram se tratar de um “retrocesso”. Os “artistas e produtores” não parecem muito criativos com seu vocabulário. Antes fosse: estávamos muito melhor antes de 1985. Não se tem notícia de ter um Machado de Assis, um Graciliano Ramos, um Guimarães Rosa graças ao Ministério da Cultura. Tivemos, é claro, uma tentativa de Cláudia Leitte de lançar seu livro, mas desistiu após ser “humilhada”. Chico Buarque já traduziu o seu para o coreano via Lei Rouanet sem humilhação alguma.
De fato, a definição de Cacá Diegues está “simplificando”. Bastante. O que chamamos de “cultura” são, na verdade, elementos culturais, tradutores da cultura de um povo para ele próprio e o mundo. A cultura verdadeira sempre tem algo de universal. Shakespeare ou Goethe, São Tomás de Aquino ou Yasunari Kawabata não exigem a participação e filiação em seus grupos para nos tocarem em algo.
Ministério da Cultura, Cultura de Ministério
Cultura vem do latim cultus, indicando a idéia de cultivo, de terra (como em “cultura de uvas”). Algo local, próprio de um determinado povo, mas cujo valor transcende fronteiras. A cultura da solicitude inglesa, da hospitalidade árabe, do ordenamento alemão, da oralidade judaica, do tradicionalismo japonês ou do jeitinho brasileiro são traduzidas em obras de arte, na língua, na literatura, em bens culturais de valor transcendente.
Nenhuma delas foi criada por um “ministério”. O máximo que estes podem fazer é patrocinar algum artista que possa transmitir tal cultura em sua arte. É a figura do mecenas, freqüente desde a Antigüidade – Mecenas era um conselheiro do imperador Augusto. Em diversos momentos da humanidade, várias figuras fizeram as vezes do mecenato, do financiamento de artistas, da burguesia aos tiranos.
E é onde reside o problema: nunca um financiador de arte irá cuidar da “cultura” de maneira geral e irrestrita, qualquer produção cultural, e sobretudo as de qualidade, conceito subjetivo por definição. Os liberais chamam isto de “conhecimento difuso”, que não está e não pode estar nunca em um único agente; não é, portanto, por birra ou cabeça-durice, mas por pessimismo que liberais desacreditam no Estado como melhor agente.
Se o Estado e os governantes que o controlam não irão patrocinar todas as artes, irão naturalmente tirar da livre competição do mercado e alçar à proteção da verba garantida aquelas com quais eles concordam. O Ministério da Cultura de Dilma Rousseff iria patrocinar um show de death metal ou de Chico Buarque? O Ministério da Cultura de José Sarney iria patrocinar um livro de Millôr Fernandes, que o chamava por Sir Ney, ou uma tradução para o caldeu de seu Maribondos de Fogo?
A mera existência de um financiador com poder de monopólio implica uma forma de censura. Não se trata de proibição, mas de financiamento massivo a qualquer concorrente. Alguém pode ficar feliz com Lula e Dilma patrocinando livros de Chico Buarque, filmes de José de Abreu, peças de teatro de petistas enfiando o dedo no ás-de-copas de outros petistas. E se o próximo presidente for um “homofóbico” de direita, e estas pessoas, ao invés de buscar o financiamento difuso de empresas que concorrem entre si, dependerem da aprovação de seus acólitos para uma peça com beijo gay? Quer censura mais fácil do que esta, que é aplaudida pelos censurados?
Não à toa, de Nero a Adolf Hitler, a coisa mais comum do poder político é se cercar de artistas bajuladores (a grande diferença é que outrora eram talentosos, como o poeta Konstantin Simonov, protegido por Stalin, como conta Orlando Figes em Sussuros: A vida privada na Rússia de Stalin).
Se ao invés de financiarem projetos segundo seus interesses, permitindo que artistas em busca de recursos procurem empresas diversas (tecnologia semelhante à maravilha que é a Bolsa de Valores, que permite que pessoas inventivas sem dinheiro lucrem com endinheirados sem idéias empreendedoras), a produção cultural estiver no Estado tomando impostos, desestimulando empresas a financiar o que já financiam por obrigação (a Lei Rouanet e sua renúncia fiscal não permite, senão, uma renúncia de impostos, já por si obrigatórios), quem controla a produção cultural é quem controla o Estado. O resultado se vê ao nosso redor.
Somos o único país do mundo sem uma literatura que espelhe a realidade. Sem músicos de nota, senão aqueles que ignoram completamente a jogatina política. Nossa maior arte plástica hoje são os desenhinhos de Romero Britto. E os artistas, claro, são todos favoráveis ao partido no governo até há pouco. Sem ele, parece que morrerão de fome.
Para piorar, a arte estatal via Ministério da Cultura só pode, por natureza, copiar a produção artística vigente – não há como financiar um Homero, Mahler, Victor Hugo ou M. C. Escher se não se vê nenhum deles por aí. Só se pode financiar a bandinha emo, o axézeiro que toca na festa da filha do governador da Bahia, o grafiteiro preferido do Fernando Haddad, a peça de teatro com mérito de ter algum ator da Globo xingando o Bolsonaro e o capitalismo para ser hype.
Pior: tem a obrigação de financiar o pior deles, do contrário sua existência também é posta em xeque – por que “promoveria” a cultura, se fora das monarquias, tem apenas a opinião pública medindo tudo por quantidade de público, e não qualidade da obra, para servir de régua? Como estaria “promovendo” algo já promovido?
Basta ver os projetos mais bizarros aprovados pela Lei Rouanet, como elencou o site Spotniks: vai do DVD de MC Guimê (meio milhão) aos R$ 4 milhões para uma turnê de Luan Santana e R$ 1 milhão para turnê de Detonautas, além do imperdível Brizola: tempos de luta, com exposição (!) “Um brasileiro chamado Brizola”. Será que permitiriam uma contrária ao governo? Nossa cultura foi salva pelo ministério?
É muito bonitinho confundir a si próprio com a própria “cultura nacional” só por ter um trabalho economicamente improdutivo (nem fale de escrever na internet) e falar que, sem Ministério da Cultura, não haverá cultura. O fato é que não haverá mamata. Só isso. A cultura sempre respirou melhor com mecenas difusos e só denegriu com um partido que confunde a si próprio com o Estado, pedalada com justiça social, fazer cocô em público com manifestação, enfiar o dedo no oritimbó com performance, Tico Santa Cruz com música e por aí vai.
Perguntar para que serve o ministério da Cultura para os incultos que dele recebiam verba e obter 1% da profundidade acima é esperar que um ganso aprenda a rosnar enquanto chupa cana plantando bananeira. O que seria uma peça cultural de muito mais valor do que eles produzem.
Fonte: http://sensoincomum.org/